Almino Rocha Filho
O meu amigo Expedito Vasconcelos, ilustre prefeito do “Becco do Cotovelo”, pediu-me que participasse da discussão que os frequentadores do “Coração de Sobral” acalentam acerca da propriedade ou impropriedade da ortografia da sua denominação, tal como se apresenta em placa metálica solenemente entronizada pelo mais operoso prefeito municipal de Sobral, o engenheiro Cid Ferreira Gomes. Verdadeiramente, não sou qualificado para tal empreitada. A Filologia não consta de meu currículo acadêmico e me reconheço no rol dos mais iletrados alunos dos grandes Mestres MARIANO ROCHA FILHO, PADRE OSVALDO CARNEIRO CHAVES e DOM AUSTRAGÉSILO DE MESQUITA. Lamentavelmente, nenhum deles jamais ocupou uma cadeira na nossa Academia Sobralense de Estudos e Letras, o que tem levado meu outro ilustre Mestre, JOSÉ CORDEIRO DAMASCENO, a advogar a tese de que o nosso silogeu não está à altura deles. Portanto, não é por falta de senso de autocrítica que estou aceitando a provocação. Faço-o, primeiramente, por exacerbado amor ao que minha Sobral tem de mais humanista e humanitário, esta artéria que se transmudou em coração, o “BECCO DO COTOVELO”; e; secundariamente, por exercício de aprendizagem, na expectativa das muitas lições que haverão de vir, através das sábias críticas dos leitores deste veículo de comunicação. Como é sabido, quase todas as palavras da língua portuguesa são latinas, apreendidas diretamente das legiões romanas que dominaram a península ibérica ou do latim escrito nos documentos eclesiásticos e legislativos, ou, ainda, nos autores da alta latinidade e nos livros científicos, vez que, até o século XVIII, toda a ciência era escrita em latim. ALEXANDRE HERCULANO de Carvalho e Araújo, na Introdução da 3ª edição da História de Portugal, publicada em 1863, fala de um latim vulgar, resíduo da antiga língua do Lácio, que se contrapõe ao latim literário. Resultou da miscigenação dos povos, ao tempo das conquistas. Assim, foi do latim popular, conhecido através da audição, que surgiu a palavra “becco: rua escusa e pouco própria para o trânsito, ordinariamente estreita e curta.” (VIEIRA, 1871 : 747). Resta-nos, agora, conhecer o étimo latino do qual procede a palavra “becco”. F. J. Caldas Aulete não titubeou: “Formação latina vicus.” (AULETE, 1881: 213). No entanto, a edição brasileira de seu dicionário, “atualizada, revista e consideravelmente aumentada pela introdução dos vocábulos em uso no Brasil, pelo registro completo dos termos técnicos e científicos e pela averbação sistemática dos étimos por Hamilcar de Garcia”, dá como “formação talvez latina vicculu. Compare italiano viccolo.” Cândido de Figueiredo diz com hesitação: “Do latim viculus?” (FIGUEIREDO, 1913: 230). Antenor Nascentes é incisivo: “A base deve ser o latim via ‘caminho, ‘rua’, com sufixo diminutivo – eco.” (NASCENTES, 1966 94). Silveira Bueno discorda de todos: “origem discutida, talvez de becco, bico, no sentido de extremidade pela qual termina a rua. A hipótese de vieco, diminutivo de via, apresenta dificuldades fonéticas inaceitáveis bem como de vicus, rua. (BUENO, 1968: 498). É claro que a minha preferência recai sobre a assertiva de significando veira Bueno: a origem gaulesa, através do latim beccum, “proeminência córnea que forma a parte dianteira da boca das aves.” (AU- LETE, 1958: I, 677). Se boca e vaca do latim bucca e vacca não fossem assim grafados no sermo rusticus, não teríamos bôca nem vaca, mas “boga” e “vaga”, pois esta é a regra: o “c”, em posição fraca, isto é, entre vogais, transmuda-se em “g”. Assim, beco deriva de “becco”; do contrário, teríamos “bego”. No francês, encontramos” bec; no italiano, becco; no espanhol, pico; e, no português, bico. Na verdade, em tudo o Becco do Cotovelo lembra a proeminência córnea que forma a parte dianteira dos aparelhos digestivo, respiratório e vocal das aves. No Becco do Cotovelo estão concentrados vários estabelecimentos gastronômicos. No Becco do Cotovelo respira-se a liberdade dos pássaros, mercê do regime plenamente democrático ali vivenciado. O Becco do Cotovelo é o mais expressivo veículo de comunicação oral de todo o interior cearense. O Becco do Cotovelo, mais e melhor do que a parte do braço que o denomina, assemelha-se, fisicamente, ao bico de uma ave, com a sua ligeira e graciosa curvatura urbanística. Foi com o nome de BECCO DO COTOVELO que ele foi batizado, a 19 de outubro de 1842, pela Câmara da Fidelíssima Cidade Januária do Acaracu (sic), como então era oficialmente denominada nossa Sobral, tendo por padrinho o Coronel José Saboia, que, há muito, quando ainda vereador da Vila Distinta e Real de Sobral, lhe sugeriu o nome. Era assim que Madureira Feijó, em sua Ortografia ou Arte de Escrever e Pronunciar com Acerto a Língua Portuguesa, e Monte Carmelo, em seu Compêndio de Ortografia, ambos publicados no século XVIII, ensinavam grafar a palavra beco: becco. O Becco do Cotovelo tem tradição que merece ser respeitada e conservada. Que seja louvado o seu bizarro nome de batismo, pois heráldica é a sua terra e nobilíssima a sua gente!BIBLIOGRAFIA: AULETE, F. J. Caldas. DICIONÁRIO CONTEMPORÂNEO DA LINGUA PORTUGUÊSA. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1881; 4. ed. Rio de Janeiro: DELTA, 1958; BUENO, Francisco da Silveira. GRANDE DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO-PROSÓDICO DA LINGUA PORTUGUESA. São Paulo: SARAIVA, 1968; FIGUEIREDO, Cândido de. NOVO DICIONÁRIO DA LINGUA PORTUGUÊSA. Lisboa: Livraria Clássica Editora,, 1913; NASCENTES, Antenor. DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO RESUMIDO. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1966; GRANDE DICIONÁRIO PORTUGUEZ. Porto: Ernesto VIEIRA, Dr. Frei Domingos. Chardron e B. H. de Moraes, 1871.